quinta-feira, 28 de maio de 2009
Ficção rápida
Um homem ia devagar, rua abaixo, quando, de repente, viu uma folha de papel voar até ao meio da rua. Veio um carro e passou-lhe por cima. Percebendo que tinha alguma coisa escrita, o homem foi apanhá-la para a ler. Dizia: “A poesia está obsoleta: o que move as pessoas já não me comove”. Com um encolher de ombros, o homem largou o papel com uma careta de repulsa.
Etiquetas:
Ficção rápida
quarta-feira, 27 de maio de 2009
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Outra história de Marrocos
Uma noite, em Marraquexe, um velho beduino aproximou-se de mim com um grande punhal (o cabo era forrado a pele, assim como a bainha) para me dizer que tinha vindo da montanha à procura de trabalho para alimentar a família. Desanimado, queria agora voltar para casa, mas não tinha um tostão. Tudo o que tinha era aquele punhal que me queria vender pelo dinheiro que eu quisesse dar.
Expliquei-lhe que não queria o punhal para nada, mas à boa maneira marroquina ele foi-me seguindo, sempre com a mesma lamúria, evocando os filhos e a fome que deviam ter. Por fim, lá lhe dei algum dinheiro pelo facalhão, que guardei na mochila.
Mais tarde nessa noite, quando regressava ao hotel, vi o mesmo velho a assediar outro casal de europeus, mostrando-lhes uma faca em tudo igual à que me tinha vendido. Quando me viu, com um sorriso maroto, piscou-me o olho e, virando-me as costas, colocou-se entre mim e os turistas que procurava enganar.
Expliquei-lhe que não queria o punhal para nada, mas à boa maneira marroquina ele foi-me seguindo, sempre com a mesma lamúria, evocando os filhos e a fome que deviam ter. Por fim, lá lhe dei algum dinheiro pelo facalhão, que guardei na mochila.
Mais tarde nessa noite, quando regressava ao hotel, vi o mesmo velho a assediar outro casal de europeus, mostrando-lhes uma faca em tudo igual à que me tinha vendido. Quando me viu, com um sorriso maroto, piscou-me o olho e, virando-me as costas, colocou-se entre mim e os turistas que procurava enganar.
Etiquetas:
Marrocos
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Pura realidade
Foi durante a minha primeira viagem a Marrocos, em 1976. Tinha decidido regressar de vez a Portugal, mas só depois de umas férias no Norte de África.
Uma das cidades que queria absolutamente conhecer era Fez, porque tinha trabalhado em França, durante dois anos, com um rapaz de lá, chamado Mustapha Hammouch (Muss, para os amigos). Na verdade, pertencíamos ambos a uma equipa de quatro pessoas que percorria a França de lés a lés em acções de formação para uma empresa que vendia enciclopédias de porta em porta.
Ele falara-me tantas vezes da sua terra, e da sua família, que me pareceu natural, estando em Marrocos, passar por lá.
Adorei Fez, é claro, e muito particularmente o seu cemitério, fora dos muros da cidade, e a incrível Medina onde, a toda a hora, passam por nós burros carregados com toda a espécie de mercadorias. A primeira coisa que aprendemos na Medina de Fez é a afastar-nos desses burros, conduzidos por loucos que gritam «Balek! Balek!» (que suponho queira dizer: «saiam do caminho!»).
A esses burros, chamavam na altura (e suponho que ainda hoje) os «táxis da Medina». Com efeito, as suas ruas são tão estreitas que nenhum veículo ali conseguiria entrar.
Abreviando: uma das primeiras coisas que fiz em Fez foi ir visitar o irmão mais velho do meu amigo Muss, que sabia ser empregado dos Correios. Como seria de esperar, ele ficou encantado por me conhecer (o irmão, obviamente, tinha-lhe falado de mim) e convidou-me para ir jantar em sua casa nessa noite.
Aceitei com agrado e à hora aprazada lá me apresentei, levando uma caixa de chocolates para oferecer à senhora Hammouch. Porém, quando o anfitrião me abriu a porta tive um choque: ele tinha vestido uma camisa que me pertencera (de que eu gostava muito, na verdade) e que julgava ter perdido.
Claro que não disse nada, e que apreciei devidamente o delicioso cuscus que me serviram (e que tive de comer com as mãos á boa maneira marroquina), mas fiquei a saber onde tinham ido parar as roupas que de vez em quando me desapareciam.
Uma das cidades que queria absolutamente conhecer era Fez, porque tinha trabalhado em França, durante dois anos, com um rapaz de lá, chamado Mustapha Hammouch (Muss, para os amigos). Na verdade, pertencíamos ambos a uma equipa de quatro pessoas que percorria a França de lés a lés em acções de formação para uma empresa que vendia enciclopédias de porta em porta.
Ele falara-me tantas vezes da sua terra, e da sua família, que me pareceu natural, estando em Marrocos, passar por lá.
Adorei Fez, é claro, e muito particularmente o seu cemitério, fora dos muros da cidade, e a incrível Medina onde, a toda a hora, passam por nós burros carregados com toda a espécie de mercadorias. A primeira coisa que aprendemos na Medina de Fez é a afastar-nos desses burros, conduzidos por loucos que gritam «Balek! Balek!» (que suponho queira dizer: «saiam do caminho!»).
A esses burros, chamavam na altura (e suponho que ainda hoje) os «táxis da Medina». Com efeito, as suas ruas são tão estreitas que nenhum veículo ali conseguiria entrar.
Abreviando: uma das primeiras coisas que fiz em Fez foi ir visitar o irmão mais velho do meu amigo Muss, que sabia ser empregado dos Correios. Como seria de esperar, ele ficou encantado por me conhecer (o irmão, obviamente, tinha-lhe falado de mim) e convidou-me para ir jantar em sua casa nessa noite.
Aceitei com agrado e à hora aprazada lá me apresentei, levando uma caixa de chocolates para oferecer à senhora Hammouch. Porém, quando o anfitrião me abriu a porta tive um choque: ele tinha vestido uma camisa que me pertencera (de que eu gostava muito, na verdade) e que julgava ter perdido.
Claro que não disse nada, e que apreciei devidamente o delicioso cuscus que me serviram (e que tive de comer com as mãos á boa maneira marroquina), mas fiquei a saber onde tinham ido parar as roupas que de vez em quando me desapareciam.
Sonho
Estou num teatro ao ar livre, com a Raquel, ali para os lados de Torres Novas. Ela vai encontrando pessoas que conhece e distrai-se a conversar com elas, esquecendo-se de mim. Um bocado chateado com a situação, vejo que há um lugar vazio na primeira fila do anfiteatro e vou ocupá-lo.
Está um carro na zona do palco. Quando a peça começa, um actor vem buscar-me pela mão, a mim e mais duas pessoas e leva-nos para dentro do automóvel, arrancando de seguida.
Para meu grande espanto, saímos do espaço do teatro e dirigimo-nos à cidade. De repente, o actor pára o carro e sem dizer nada, com a ajuda de umas pessoas que estão por ali, vira o carro de pernas para o ar connosco lá dentro.
Quando conseguimos sair cá para fora, o actor e os seus companheiros desapareceram. Uma das pessoas que está comigo vai para o lugar do condutor e propõe-se levar-nos de volta para o teatro. Vai, porém, bastante depressa e acaba por bater nas traseiras de um outro veículo que segue à nossa frente. O condutor parece não ter dado por nada e continua o seu caminho, mas eu vejo óleo a cair e algum fumo.
Num ápice, estamos do lado de fora do muro que cerca o teatro e temos que o escalar. Do outro lado, penetro num edifício que não conheço e procuro o caminho que me leve até à Raquel.
Sempre à procura de uma saída, abro uma porta que dá para um quarto onde está alguém a dormir. A pessoa acorda e quando me vê exclama: «Estes gajos do Expresso têm cá uma lata!».
É um jornalista que conheço e indica-me o caminho para o anfiteatro. Quando lá chego, porém, está vazio. Já não há nem actores, nem espectadores. Fico tão desconsolado que acordo, angustiado.
Post-scriptum: Como dizia Valéry, «Estás cheio de segredos a que chamas EU. És voz do teu desconhecido». Valéry dizia também: «Encontrar nada é. Difícil é acrescentar a nós próprios o que encontramos».
Está um carro na zona do palco. Quando a peça começa, um actor vem buscar-me pela mão, a mim e mais duas pessoas e leva-nos para dentro do automóvel, arrancando de seguida.
Para meu grande espanto, saímos do espaço do teatro e dirigimo-nos à cidade. De repente, o actor pára o carro e sem dizer nada, com a ajuda de umas pessoas que estão por ali, vira o carro de pernas para o ar connosco lá dentro.
Quando conseguimos sair cá para fora, o actor e os seus companheiros desapareceram. Uma das pessoas que está comigo vai para o lugar do condutor e propõe-se levar-nos de volta para o teatro. Vai, porém, bastante depressa e acaba por bater nas traseiras de um outro veículo que segue à nossa frente. O condutor parece não ter dado por nada e continua o seu caminho, mas eu vejo óleo a cair e algum fumo.
Num ápice, estamos do lado de fora do muro que cerca o teatro e temos que o escalar. Do outro lado, penetro num edifício que não conheço e procuro o caminho que me leve até à Raquel.
Sempre à procura de uma saída, abro uma porta que dá para um quarto onde está alguém a dormir. A pessoa acorda e quando me vê exclama: «Estes gajos do Expresso têm cá uma lata!».
É um jornalista que conheço e indica-me o caminho para o anfiteatro. Quando lá chego, porém, está vazio. Já não há nem actores, nem espectadores. Fico tão desconsolado que acordo, angustiado.
Post-scriptum: Como dizia Valéry, «Estás cheio de segredos a que chamas EU. És voz do teu desconhecido». Valéry dizia também: «Encontrar nada é. Difícil é acrescentar a nós próprios o que encontramos».
Etiquetas:
Dos sonhos,
Valéry
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Deleuze, de novo
Já que estou a citar Deleuze, graças a um livro que comprei ontem na Feira do Livro por cinco euros, deixem-me transcrever mais duas passagens com as quais concordo absolutamente, e que toda a gente deveria ter em conta: «Os poderes estabelecidos precisam das nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os ladrões de almas, necessitam de nos persuadir de que a vida é dura e pesada», pois os poderes «precisam menos de nos reprimir do que nos angustiar».
No mesmo parágrafo, pode ler-se: «Os doentes, tanto da alma como do corpo, são vampiros; não nos darão descanso, enquanto não nos tiverem comunicado a sua neurose e a sua angústia, a sua querida castração, o ressentimento contra a vida, o seu imundo contágio. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar os encontros, aumentar a potência de agir, afectar-se de alegria, multiplicar os afectos que exprimem ou encerram um máximo de afirmação».
Resumindo: «Há muitos neuróticos e doidos no mundo que não nos deixam enquanto não nos tiverem reduzido ao seu estado e nos tiverem passado o seu veneno».
No mesmo parágrafo, pode ler-se: «Os doentes, tanto da alma como do corpo, são vampiros; não nos darão descanso, enquanto não nos tiverem comunicado a sua neurose e a sua angústia, a sua querida castração, o ressentimento contra a vida, o seu imundo contágio. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar os encontros, aumentar a potência de agir, afectar-se de alegria, multiplicar os afectos que exprimem ou encerram um máximo de afirmação».
Resumindo: «Há muitos neuróticos e doidos no mundo que não nos deixam enquanto não nos tiverem reduzido ao seu estado e nos tiverem passado o seu veneno».
Etiquetas:
Deleuze
Da crise
Já em meados dos anos 90, o filósofo francês Gilles Deleuze afirmava: «O Estado mais centralizado não é de forma alguma senhor dos seus planos, pois ele também é experimentador, faz injecções não conseguindo prever o que quer que seja: os economistas do Estado declaram-se incapazes de prever o aumento de uma massa monetária». A política americana, por exemplo, «é inteiramente forçada a proceder por injecções empíricas, e nunca por programas infalíveis.» Na mesma altura, explicava também que o que carateriza a nossa situação está simultaneamente aquém e além do Estado, pois estão para além dos Estados nacionais, «o desenvolvimento do mercado mundial, a potência das multinacionais, o esboço de uma organização planetária e a extensão do capitalismo a todo o corpo social», que «formam uma grande máquina abstracta que sobrecodifica os fluxos monetários, industriais e tecnológicos». E dizia ainda: «Ao mesmo tempo, os meios de exploração, de controlo e de vigilância, tornam-se cada vez mais subtis e difusos», pelo que «o Estado já não dispõe dos meios políticos, institucionais ou mesmo financeiros que lhe permitiriam enfrentar os contragolpes sociais da máquina».
Ou seja, a menos de sermos capazes de inventar rapidamente «um novo tipo de revolução», estamos fodidos!
Ou seja, a menos de sermos capazes de inventar rapidamente «um novo tipo de revolução», estamos fodidos!
quarta-feira, 13 de maio de 2009
A próxima história
– Por onde queres que comece?
– Começa por onde quiseres, tanto faz.
– O difícil é começar...
– Tabucchi aconselha a começar por um facto.
– Quem é esse?
– É um escritor italiano. Viveu em Portugal, até escreveu um livro em português.
– Então está bem, comecemos por um facto. A morte do meu pai, por exemplo. Não só é um facto, como ainda por cima é um facto consumado.
– Isso não, bolas. Não quero que isto degenere numa sessão de psicanálise. Não era o que eu tinha em mente.
– Se é assim, calo-me já.
– Não sejas chata Sílvia. Faz uma nova tentativa, vá lá. Procura pensar em coisas engraçadas. De certeza que te já te aconteceram histórias giras.
– Histórias giras? Estás a gozar comigo? Foi para isto que vieste cá a casa? Se é assim, se é isso que tu queres, o melhor é ires já embora. Não penses que vou em todas as tuas conversas, não estou assim tão desesperada.
– Que se passa contigo? Não me ajudas em nada, não dizes nada de jeito...
– Já te disse Mário que não gosto desta sensação de te estares a aproveitar de mim para as tuas historietas. Sinto-me como se tivesse embarcado numa aventura que não me diz respeito.
– Tem calma e ouve o que te digo. Temos umas horas pela frente, não vais querer estragá-las, pois não? Lá fora está um calor horrível, aposto que te ias sentir mal sabendo-me por aí a caminhar aí pelas ruas, zangado contigo.
– Que propões então?
– Vamos esquecer que o tempo existe. Vamos fazer como se estivéssemos a sonhar. Vamos dizer tudo o que nos passe pela cabeça.
– O que é que tu queres exactamente? Onde é que queres chegar?
– O que eu quero é perceber se podemos chegar a algum lado.
– Aqui sentados?
– Aqui sentados, sim.
– Dispara.
– A vida somos nós que a fazemos. A responsabilidade é nossa. A história é nossa. Tudo o que dissermos pode virar-se contra nós.
– Que queres dizer com isso?
– Não é caso para teres medo.
– Eu não tenho medo.
– Ai isso é que tens. Basta olhar para os teus olhos.
– Detesto esta sensação de saber menos do que tu.
– A ignorância tem um lado bom. Aliás, tem vários lados bons.
– Sim? Quais?
– Se não percebes isto, tenho pena de ti.
– Eu, pelo contrário, vejo a ignorância como uma ameaça muito grande. Faz-me medo saber que há tantas coisas que não sei.
– A isso não se chama ignorância, mas sim paranóia.
– Vivemos num mundo em que quanto mais informação possuímos, mais fortes somos.
– Ilusão. Pura ilusão.
– Então partilha comigo o que sabes.
– Mas eu não sei nada...
– Mesmo esse nada eu gostaria de saber. Tudo o que esqueci me angustia. Tudo se esvai e não está certo. Devíamos ser um repositório de tudo o que vivemos, aprendemos, ouvimos, dizemos...
– Nós somos isso tudo. Está tudo dentro de nós.
– Sim, mas oculto por coisas sem importância nenhuma. Escondido atrás de preocupações tão risíveis como saber o que vamos fazer para o jantar ou o que vestir amanhã. A minha imperfeição dá cabo de mim. Detesto-me, se queres saber.
– Não quero saber.
– Não percebes nada do que estou para aqui a dizer, pois não?
– Acho que apenas que te estás a fazer interessante. Que te queres sentir uma personagem de romance... ou a actriz de um filme que não existe.
– E tu?
– E eu o quê?
– Estás-te nas tintas para o que eu estou a sentir.
– Que estás a sentir?
– Queres histórias giras? Então vou-te contar uma que ainda não aconteceu.
– Uma que ainda não aconteceu? Óptimo. Sabia que acabarias por me surpreender.
– Vai ser assim tal e qual, quase que aposto. Um dia vais acordar e quando estiveres a fazer a barba na casa de banho, eu vou querer entrar porque estou aflita para fazer chichi. Nessa altura, vais olhar-me pelo canto do olho, ali sentada na sanita a teu lado e, de repente... vais perceber que já não me amas.
– Que estás para aí a querer dizer?...
– Deixa-me falar, não me interrompas. Querias que eu falasse, agora aguenta. Não era para dizer tudo o que nos passasse pela cabeça?... Vais olhar para mim, para o meu corpo nu... e vais pensar: «Que vi eu nesta gaja? Que estou eu a fazer aqui?» Assim, de um dia para o outro, vais perceber que já não gostas de mim, que se calhar nunca gostaste e vais querer partir para outra.
– ...
– Não dizes nada? Perdeste o pio?... Em que estás a pensar?
– Estou a pensar que estás a contar o filme todo ao contrário. É a ti que vai acontecer isso, não a mim, se é que não aconteceu já. Provavelmente até foi esta manhã, quando estavas a tomar duche e eu entrei na casa de banho para fazer a barba. Através das cortinas do chuveiro, viste-me urinar e pensaste: «Que está este gajo a fazer em minha casa? Porque se comporta ele deste modo? Fui eu que lhe dei autorização para isso? Onde tinha eu a cabeça? Como pude eu alguma vez pensar que gostava dele?»
– Querias uma história meu querido? Pois aí a tens... A menos que prefiras a da mulher que vai fazer um aborto amanhã de manhã?
– Começa por onde quiseres, tanto faz.
– O difícil é começar...
– Tabucchi aconselha a começar por um facto.
– Quem é esse?
– É um escritor italiano. Viveu em Portugal, até escreveu um livro em português.
– Então está bem, comecemos por um facto. A morte do meu pai, por exemplo. Não só é um facto, como ainda por cima é um facto consumado.
– Isso não, bolas. Não quero que isto degenere numa sessão de psicanálise. Não era o que eu tinha em mente.
– Se é assim, calo-me já.
– Não sejas chata Sílvia. Faz uma nova tentativa, vá lá. Procura pensar em coisas engraçadas. De certeza que te já te aconteceram histórias giras.
– Histórias giras? Estás a gozar comigo? Foi para isto que vieste cá a casa? Se é assim, se é isso que tu queres, o melhor é ires já embora. Não penses que vou em todas as tuas conversas, não estou assim tão desesperada.
– Que se passa contigo? Não me ajudas em nada, não dizes nada de jeito...
– Já te disse Mário que não gosto desta sensação de te estares a aproveitar de mim para as tuas historietas. Sinto-me como se tivesse embarcado numa aventura que não me diz respeito.
– Tem calma e ouve o que te digo. Temos umas horas pela frente, não vais querer estragá-las, pois não? Lá fora está um calor horrível, aposto que te ias sentir mal sabendo-me por aí a caminhar aí pelas ruas, zangado contigo.
– Que propões então?
– Vamos esquecer que o tempo existe. Vamos fazer como se estivéssemos a sonhar. Vamos dizer tudo o que nos passe pela cabeça.
– O que é que tu queres exactamente? Onde é que queres chegar?
– O que eu quero é perceber se podemos chegar a algum lado.
– Aqui sentados?
– Aqui sentados, sim.
– Dispara.
– A vida somos nós que a fazemos. A responsabilidade é nossa. A história é nossa. Tudo o que dissermos pode virar-se contra nós.
– Que queres dizer com isso?
– Não é caso para teres medo.
– Eu não tenho medo.
– Ai isso é que tens. Basta olhar para os teus olhos.
– Detesto esta sensação de saber menos do que tu.
– A ignorância tem um lado bom. Aliás, tem vários lados bons.
– Sim? Quais?
– Se não percebes isto, tenho pena de ti.
– Eu, pelo contrário, vejo a ignorância como uma ameaça muito grande. Faz-me medo saber que há tantas coisas que não sei.
– A isso não se chama ignorância, mas sim paranóia.
– Vivemos num mundo em que quanto mais informação possuímos, mais fortes somos.
– Ilusão. Pura ilusão.
– Então partilha comigo o que sabes.
– Mas eu não sei nada...
– Mesmo esse nada eu gostaria de saber. Tudo o que esqueci me angustia. Tudo se esvai e não está certo. Devíamos ser um repositório de tudo o que vivemos, aprendemos, ouvimos, dizemos...
– Nós somos isso tudo. Está tudo dentro de nós.
– Sim, mas oculto por coisas sem importância nenhuma. Escondido atrás de preocupações tão risíveis como saber o que vamos fazer para o jantar ou o que vestir amanhã. A minha imperfeição dá cabo de mim. Detesto-me, se queres saber.
– Não quero saber.
– Não percebes nada do que estou para aqui a dizer, pois não?
– Acho que apenas que te estás a fazer interessante. Que te queres sentir uma personagem de romance... ou a actriz de um filme que não existe.
– E tu?
– E eu o quê?
– Estás-te nas tintas para o que eu estou a sentir.
– Que estás a sentir?
– Queres histórias giras? Então vou-te contar uma que ainda não aconteceu.
– Uma que ainda não aconteceu? Óptimo. Sabia que acabarias por me surpreender.
– Vai ser assim tal e qual, quase que aposto. Um dia vais acordar e quando estiveres a fazer a barba na casa de banho, eu vou querer entrar porque estou aflita para fazer chichi. Nessa altura, vais olhar-me pelo canto do olho, ali sentada na sanita a teu lado e, de repente... vais perceber que já não me amas.
– Que estás para aí a querer dizer?...
– Deixa-me falar, não me interrompas. Querias que eu falasse, agora aguenta. Não era para dizer tudo o que nos passasse pela cabeça?... Vais olhar para mim, para o meu corpo nu... e vais pensar: «Que vi eu nesta gaja? Que estou eu a fazer aqui?» Assim, de um dia para o outro, vais perceber que já não gostas de mim, que se calhar nunca gostaste e vais querer partir para outra.
– ...
– Não dizes nada? Perdeste o pio?... Em que estás a pensar?
– Estou a pensar que estás a contar o filme todo ao contrário. É a ti que vai acontecer isso, não a mim, se é que não aconteceu já. Provavelmente até foi esta manhã, quando estavas a tomar duche e eu entrei na casa de banho para fazer a barba. Através das cortinas do chuveiro, viste-me urinar e pensaste: «Que está este gajo a fazer em minha casa? Porque se comporta ele deste modo? Fui eu que lhe dei autorização para isso? Onde tinha eu a cabeça? Como pude eu alguma vez pensar que gostava dele?»
– Querias uma história meu querido? Pois aí a tens... A menos que prefiras a da mulher que vai fazer um aborto amanhã de manhã?
Etiquetas:
Ficção rápida
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Arthur Scnitzler
«Não há nada mais difícil do que ser jovem e velho ao mesmo tempo», dizia o escritor austríaco Arthur Scnitzler. Por outras palavras, era o que me dizia também o meu amigo Ricardo hoje ao almoço.
Schnitzler era um sábio, como os seus aforismos comprovam. Ora ouçam: «Nos combates da vida pública, tal como acontece na vida quotidiana, o poder está sempre do lado dos medíocres: medíocres de espírito por um lado, mediocres do coração por outro; porque aquele que leva a sério as coisas e os homens é sempre o mais fraco».
Já agora, que falamos de poder e de políticos, ouçam mais uma das suas pérolas: «Não existe pior desperdício do espírito e do coração do que procurar convencer adversários que não se preocupam absolutamente nada em estar de acordo com eles próprios».
Schnitzler era um sábio, como os seus aforismos comprovam. Ora ouçam: «Nos combates da vida pública, tal como acontece na vida quotidiana, o poder está sempre do lado dos medíocres: medíocres de espírito por um lado, mediocres do coração por outro; porque aquele que leva a sério as coisas e os homens é sempre o mais fraco».
Já agora, que falamos de poder e de políticos, ouçam mais uma das suas pérolas: «Não existe pior desperdício do espírito e do coração do que procurar convencer adversários que não se preocupam absolutamente nada em estar de acordo com eles próprios».
Etiquetas:
Arthur Scnitzler
domingo, 10 de maio de 2009
Chavela Vargas
Isabela Vargas Lizano, que se tornou «imortal» sob o nome de Chavela Vargas, nasceu na Costa Rica, mas foi viver para o México aos 17 anos, onde se tornou num símbolo nacional, graças a canções como «La llorona», «Piensa en mí», «Volver, volver» ou «La Macorina». Aos 90 anos, a «raínha das rancheras» (como alguns lhe chamam) acaba de conceder uma entrevista bem reveladora ao diário espanhol «El País», que não resisto a transcrever, pelo menos parcialmente.
Da sua adolescência, Chavela não parece guardar grata memória. E chega a dizer que, para ela, a Costa Rica é a negação do mundo. «Ali não poderia ter lido nem a lista telefónica, pois os padres ter-me-iam comido viva.» Da sua vida naquele país, limita-se a contar que o seu principal passatempo era disparar sobre as cobras com uma pistola. E, com efeito, era tida por uma exímia pistoleira, por exemplo, por Diego Rivera e Frida Khalo, de quem foi amiga íntima. Conta-se que Chavela - que assumiu a sua homossexualidade numa época em que isso era ainda impensável - chegou a ser amante da pintora, mas sobre isso, nem uma palavra. Sobra a sua amizade com Diego e Frida, diz somente: «A certa altura, convidaram-me para ir a sua casa e fiquei a viver com eles dois anos. Aprendi todos os segredos da sua pintura. Segredos muito interessantes que nunca revelarei a ninguém. Eramos todos felizes: vivíamos o dia a dia, sem dinheiro, às vezes sem comer, mas sempre mortos de riso. Um dia, Trotsky foi lá a casa e eu perguntei: "Quem é este velho cabeludo?" E Frida pediu-me: "Não fales tão alto"».
Sobre a fama, desabafa: «Nunca me senti importante. Vivo a vida como se fosse um ofício. Com coração, com sentimento, pois não sinto que seja algo imposto pelo destino. E sinto-me muito contente. Cumpri a minha missão, com muito gosto. Com amargura, por vezes, com dor sobretudo, mas tudo isso passou. Não deixou cicatrizes na minha vida. Não tenho más recordações, tudo foi óptimo».
Antes de se despedir, lança em jeito de testamento: «Agora já vou tendo vontade de descansar para sempre. Já não devo nada à vida, nem ela me deve nada. Tenho vontade de me deitar no regaço da morte, pois deve ser muito belo. Talvez por isso tenhamos tanto medo da morte: porque deve ser lindíssima».
Etiquetas:
Chavela Vargas
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Pura realidade
A caminho da baixa passo pela Rua Barata Salgueiro e que vejo? Pedro Mexia, o novo subdirector da Cinemateca, a entrar para um carro do estado. O chófer abre-lhe a porta e o cronista aninha-se lá dentro com um sorriso de nababo.
Extraordinário! Portugal é um grande país de facto, onde até os animadores culturais - desde que trabalhem para o Estado - têm direito a mordomias! Só é pena que o dinheiro que pagamos de impostos não seja investido em melhor educação e saúde para todos.
Extraordinário! Portugal é um grande país de facto, onde até os animadores culturais - desde que trabalhem para o Estado - têm direito a mordomias! Só é pena que o dinheiro que pagamos de impostos não seja investido em melhor educação e saúde para todos.
Etiquetas:
Pura realidade
Aforismo
Para algumas pessoas, o facebook é um espelho mágico: vêem-se aí mais belas do que são na realidade.
Etiquetas:
Dos blogues
A orelha de Van Gogh
Todos ouvimos a história de que um dia, Van Gogh, num ataque de loucura, cortou a sua própria orelha com uma navalha, tendo-a levado em seguida, embrulhada em papel de jornal, a uma sua amiga prostituta chamada Rachel. Foi na véspera do Natal de 1888, na sua casa de Arles, depois de uma violenta discussão com o seu amigo Gaugin.
Esta semana, porém, surgiu uma tese, assinada por dois universitários alemães, que levanta uma nova hipótese. Segundo Rita Wildegans e Hans Kaufman, que investigaram exaustivamente o assunto, terá sido Gaugin quem cortou a orelha do amigo com o seu famoso sabre. Van Gogh assumiu a culpa para não deteriorar ainda mais a conflituosa relação entre os dois.
Os autores defendem que terá sido Gaugin a sugerir esta solução, propondo um pacto de silêncio que ambos cumpriram até à morte. Em abono da sua teoria, lembram que Gaugin era um espadachim famoso e que «fugiu» para Paris imediatamente após o incidente.
A tese agora publicada na Alemanha afirma ainda que Van Gogh estaria intoxicado por chumbo, arsénio e cádmio contidos nas tintas que usava. O casal de investigadores vai ao ponto de afirmar que foi essa intoxicação que provocou a «loucura» do pintor.
Louis Van Tilborgh do Museu Van Gogh de Amesterdão não concorda com esta visão das coisas e afirma que não há certeza de Gaugin ter abandonado Arles imediatamente após o episódio da orelha. Defende a tese da auto-mutilação e lembra que Van Gogh perdia muitas vezes o controlo sobre si próprio. E a verdade é que o pintor se suicidou sete meses mais tarde.
Seja quem for que cortou a orelha, uma coisa é certa: há muita gente a viver hoje à conta de um pintor que nunca conseguiu vender um quadro na vida.
Etiquetas:
Van Gogh
Outra história de Marraquexe
Estou a passear num jardim quando, de repente, no meio do caminho vejo um pacote de Marlboro vazio. Instintivamente, dou-lhe um pontapé para o tirar do caminho. Impulsionado como por uma mola, salta um marroquino que parecia dormitar na relva e começa a gritar comigo, gesticulando muito. Quando por fim se acalmou, conseguiu explicar-me que era vendedor de cigarros avulso e que aquele pacote vazio no meio do caminho era a sua forma de informar o mundo de que estava ali, à sombra de uma árvore, à espera de clientes.
Etiquetas:
Marrocos
domingo, 3 de maio de 2009
Subscrever:
Mensagens (Atom)
Arquivo do blogue
-
▼
2009
(306)
-
▼
maio
(19)
- Ficção rápida
- Saudades da Índia
- Outra história de Marrocos
- Pura realidade
- Sonho
- Deleuze, de novo
- Da crise
- A próxima história
- Arthur Scnitzler
- Chavela Vargas
- Pura realidade
- Aforismo
- A orelha de Van Gogh
- Outra história de Marraquexe
- Aforismo
- Tu (arte)
- A queda do guitarrista
- Auto-retrato com dama
- Mercearia
-
▼
maio
(19)