quarta-feira, 26 de novembro de 2014
Tremor de terra
Um dia, no Congo, ou melhor, uma noite, houve um tremor de terra tremendo. Estávamos a jantar e havia visitas lá em casa. O meu pai disse: "Se me dessem agora uma estalada, não a sentiria". Um amigo que estava a seu lado, não se conteve e esbofeteou-o mesmo. Toda a gente riu, menos o meu pai, é claro, que não reagiu porque, nesse momento, se começou a ouvir um grande burburinho na rua. Fomos ver e eram dezenas de negros, homens e mulheres, algumas com crianças nos braços, que vinham pedir algum tipo de protecção. O meu pai teve a maior dificuldade em mandá-los embora, mas lá acabaram por ir, quando alguém (não saberia dizer quem), com uma pistola de alarme, disparou dois tiros para o ar. Essa foi a única noite, que me lembre, em que os meus irmãos e eu tivemos autorização para dormir na cama dos nossos pais.
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Tremor de terra
terça-feira, 18 de novembro de 2014
Estrela
Na minha casa de ossos, está uma criança escondida. Palavra a palavra, foto a foto, ouço-a respirar.
Ou seja, escondido, à vista de todos, escrevo poemas que se prolongam como um exílio. Na verdade, nunca saí do Congo.
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Jardim da Estrela (fotos)
terça-feira, 11 de novembro de 2014
O castigo
Acabo de reler O Processo de Kafka. Li-o não como uma ficção, mas como o relato de uma realidade bem mais real do que aquela a que a vida moderna nos “reduziu”. Por exemplo, a sociedade judiciária que ele descreve representa, não apenas a sociedade dos homens na qual estamos “presos”, como moscas numa rede de teias de aranha, mas a nossa própria condição de mortais conscientes da sua efemeridade, perdidos algures num Universo infinito, à mercê de uma Natureza que nunca poderemos nem entender, nem verdadeiramente amar. No capítulo judicial, não apenas no livro de Kafka, mas também no domínio mais comezinho das instituições e empresas das quais somos escravos, tudo se passa, no meu entender, como se o homem quisesse reproduzir, através de um conjunto infindável de leis e de regras, quase sempre incompreensíveis, a complexidade e a inexorabilidade da própria Natureza, aos olhos da qual não temos o mínimo significado como indivíduos. O Processo vem ainda lembrar-nos de que fomos, ou seremos, todos condenados à morte, de uma maneira ou de outra, sem nunca saber porquê. E também que a mente humana, que está “programada” para viver eternamente, encontra-se encerrada num corpo perecível, dir-se-ia que por castigo.
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O Processo
Dos sonhos
Todas as noites faço vários sonhos, dos quais muitas vezes acordo em sobressalto. Tenho consciência que os meus sonhos são mergulhos nas zonas mais secretas do meu pensamento, das quais sou expulso pela ansiedade, angústia, ou mesmo terror, que não consigo conter. Não admira que, de manhã, geralmente, tenha esquecido tudo. Uma coisa é certa, um sonho é um lugar de revelações, mas, infelizmente, todas elas inacessíveis.
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Parque das Nações (foto)
Do segredo
Um segredo esconde sempre algo de vergonhoso. Para mim, a verdadeira vergonha está na necessidade de ter segredos.
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Do segredo
Do presente
Roberto Calasso: “Que importa o passado, quando temos perante nós a imensidão do presente?”.
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Roberto Calasso
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
Ficção rápida
Era uma celebridade, mas à medida que a sua fama ia crescendo, o senhor Tavares sentia-se cada vez mais infeliz. Porque a vida é assim feita que a cada momento nos aproximamos da morte e, portanto, do esquecimento.
O senhor Tavares achava que o seu sucesso era um imenso mal-entendido, pois cada vez que lhe falavam dos seus livros, mostravam não os entender em absoluto. O senhor Tavares começava a duvidar que um dia leria uma crítica que tivesse a ver com o que efectivamente escrevia, mas também não se importava muito com isso.
O senhor Tavares nunca dava entrevistas. A única frase que um repórter conseguiu arrancar-lhe foi: «Todo o leitor é um traidor; todo o escritor, um falhado».
Ocasionalmente, o senhor Tavares escrevia um poema, mas como achava que os poemas eram tanto melhores quanto mais curtos fossem, frequentemente resumiam-se a meia dúzia de palavras. Como este, por exemplo: «De mãos vazias o digo: não era aqui que eu queria chegar».
O senhor Tavares sabia que, por mais livros que escrevesse, jamais se sentiria satisfeito, já que o seu sonho era outro. O que ele mais desejava era ser o senhor Kafka, mas aqui e agora, com o Hospital da Luz ali à mão.
Todos os dias, o senhor Tavares saía de casa para regressar a uma casa diferente. Incapaz de encontrar o seu verdadeiro lar, ele contentava-se com as casas cuja fechadura a sua chave conseguia abrir.
Foi assim que um dia veio ter a minha casa. Entrou sem pedir licença, sentou-se no sofá, quase em cima de mim, e adormeceu imediatamente, talvez para me roubar os sonhos e transforma-los em novos contos.
Quando acordou, viu que eu estava a fazer chá e afirmou, como se falasse para si próprio: “O que o mundo mais preza, cada vez o desprezo mais. Mas quanto mais estreito é o caminho, mais livre é o meu pensamento”.
Depois de me ter roubado o pequeno-almoço, e antes de ir à sua vida, o senhor Tavares ainda teve a lata de me dizer: «Como dizia Borges, a infelicidade sabe encontrar-nos; não é preciso procurá-la.»
O senhor Tavares achava que o seu sucesso era um imenso mal-entendido, pois cada vez que lhe falavam dos seus livros, mostravam não os entender em absoluto. O senhor Tavares começava a duvidar que um dia leria uma crítica que tivesse a ver com o que efectivamente escrevia, mas também não se importava muito com isso.
O senhor Tavares nunca dava entrevistas. A única frase que um repórter conseguiu arrancar-lhe foi: «Todo o leitor é um traidor; todo o escritor, um falhado».
Ocasionalmente, o senhor Tavares escrevia um poema, mas como achava que os poemas eram tanto melhores quanto mais curtos fossem, frequentemente resumiam-se a meia dúzia de palavras. Como este, por exemplo: «De mãos vazias o digo: não era aqui que eu queria chegar».
O senhor Tavares sabia que, por mais livros que escrevesse, jamais se sentiria satisfeito, já que o seu sonho era outro. O que ele mais desejava era ser o senhor Kafka, mas aqui e agora, com o Hospital da Luz ali à mão.
Todos os dias, o senhor Tavares saía de casa para regressar a uma casa diferente. Incapaz de encontrar o seu verdadeiro lar, ele contentava-se com as casas cuja fechadura a sua chave conseguia abrir.
Foi assim que um dia veio ter a minha casa. Entrou sem pedir licença, sentou-se no sofá, quase em cima de mim, e adormeceu imediatamente, talvez para me roubar os sonhos e transforma-los em novos contos.
Quando acordou, viu que eu estava a fazer chá e afirmou, como se falasse para si próprio: “O que o mundo mais preza, cada vez o desprezo mais. Mas quanto mais estreito é o caminho, mais livre é o meu pensamento”.
Depois de me ter roubado o pequeno-almoço, e antes de ir à sua vida, o senhor Tavares ainda teve a lata de me dizer: «Como dizia Borges, a infelicidade sabe encontrar-nos; não é preciso procurá-la.»
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