domingo, 28 de novembro de 2010
sábado, 27 de novembro de 2010
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
A arte de dar peidos
Acaba de sair a minha tradução de A Arte de Dar Peidos, de Pierre-Thomas-Nicholas Hurtaut. Para vos abrir o apetite, fica aqui a introdução que escrevi para a edição portuguesa:
Incrédulo, o leitor interrogar-se-á: mas então, dar peidos também é uma arte? Se a curiosidade o levou a pegar neste pequeno livro, a resposta está nas suas mãos. E garanto-lhe: a incursão por estas páginas revelar-se-á tão divertida como instrutiva. Fica, porém, o aviso: talvez o opúsculo lhe dê mais para pensar do que está à espera, pois o que se passa no nosso corpo diz mais sobre nós do que estamos preparados para admitir.
Publicado pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, A Arte de Dar Peidos teve tanto sucesso que o autor a reeditou várias vezes até à sua morte (que ocorreu em 1791). Com o tempo, a dissertação tornou-se num clássico da literatura cómica, escatológica e pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis as edições e traduções da obra no mundo inteiro. Já veremos porquê.
Filho de um comerciante (negociava cavalos), Pierre-Thomas-Nicolas preferiu dedicar-se ao ensino (professor de latim na Escola Militar) e, mais tarde, à literatura, em vez de seguir as pisadas do pai, como este desejava. A sátira não era o seu único domínio. Latinista e gramático encartado, assinou obras de literatura Le Voyage d’Aniers, 1748), de história (Dictionnaire historique de la ville de Paris, escrito em colaboração com o seu amigo Magby, em 1779), de filologia (Dictionnaire des mots homonymes de la langue française, 1775), e até de «medicina» (Essais de médecine sur le flux menstruel, 1754).
Foi, contudo, graças ao texto que o leitor tem entre mãos que Hurtaut se tornou imortal, inspirando mesmo um escritor como Frank Érvart a escrever: «nesta obra mundana e libertina, sopra o vento do espírito das Luzes».
Este falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às suas últimas consequências pois, no fundo, quer lembrar-nos que por baixo das rendas e dos perfumes, temos vísceras como qualquer outro animal e que não devemos envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como afirma, o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que pode e deve ser assumido como uma fonte de prazer. E até de arte, pois dar peidos não custa, custa é saber dá-los.
Erudito, Hurtaut cita abundantemente os autores clássicos (Aristófanes, Cícero e Horácio, entre outros), mas também pensadores mais contemporâneos, para nos lembrar que um bom peido, ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de brincadeira e de prazer, mas igualmente uma arma de guerra ou uma declaração de independência. Além de que um peido dado na boa altura é capaz de virar uma situação a nosso favor, como se verá na histórias do «pobre» Diabo e do Príncipe Peido-Airoso
A arte de dar peidos é, pois, uma ocasião rara para aprofundar um assunto sobre o qual poucos se debruçam em boa verdade. Hurtaut procura dar a volta à questão, esgotá-la sob todos os aspectos. E se é verdade que, tal como lembra o seu subtítulo, o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituados e os hipócritas (para não falar dos que têm prisão de ventre, ou diarreia, mental), a sua utilidade é inquestionável.
O que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que o peido tem de dramático (ou trágico-cómico, se preferirem) é vir lembrar-nos que somos imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo ainda antes de morrermos. E contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
A Arte de Dar Peidos não se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das razões porque o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável do peido permanecer hoje uma manifestação tão desconhecida da generalidade das pessoas como o era no século XVIII.
Por isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto. Deixem-me recordar que este hino aos gases internos vem lembrar-nos que o peido pode ter uma força expressiva extraordinária. Ele está para o corpo como o vento está para o mundo. É um sopro e, logo, divino. Se Deus o criou, ele lá sabe. A Natureza não se engana e os homens mais felizes são os que se soltam sem vergonha. Reter um peido não é bom para a saúde. Todos são bons, defende Hurtaut, porque todos têm a sua razão de ser.
Para além do mais, a escrita de Hurtaut é uma preciosidade, a obra de um virtuoso da escrita satírica, que sabe variar de estilo para criar um verdadeiro mosaico de citações e anedotas inesquecíveis. Ele maneja a língua francesa com uma musicalidade admirável e com a elegância dos escritores da época.
Roland Barthes escreveu um dia: «Por escrito, a merda não cheira mal». Não sei se concordo, há textos que fedem, e ao dizer isto estou-me a lembrar essencialmente de discursos políticos. A Arte de Dar Peidos, pelo contrário, não ofende nem o olfacto nem a inteligência. Ao transformar o ruído e o mau cheiro numa manifestação de bom gosto e erudição, Hurtaut fez obra de alquimista, defendendo, por exemplo, que não há no mundo som mais mavioso do que o peido de uma virgem. Não admira que a sua obra continue a suscitar a nossa curiosidade e aplauso.
De resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de peidos, concebido por um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma, decerto já o perceberam: a matéria do livro é, nem mais nem menos, do que um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.
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A arte de dar peidos
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Silvæ
No texto oficial da exposição pode ler-se que foi por volta de 1998 que «João Queiroz (Lisboa, 1957) passou a tomar o género da paisagem como quadro de referência do seu trabalho, radicalizando uma investigação sobre a pintura e o desenho como campos de construção de novos modos de percepção e de conhecimento». E também: «Esta exposição, a primeira antológica do trabalho de João Queiroz, ocupa as duas galerias da Culturgest, reunindo um conjunto muito vasto de pinturas e de desenhos realizados ao longo dos últimos vinte anos. Um convite a descobrir ou redescobrir uma obra de extraordinária singularidade, de enorme rigor e vitalidade, que se reinventa permanentemente na sua incessante averiguação das possibilidades da pintura e do desenho como construção de novos modos de ver.»
Na mesma publicação (distribuída gratuitamente aos visitantes da exposição), vem uma entrevista com o pintor onde ele afirma: «Com o meu olhar não quero compreender nada, organizar nada, dispor de nada, catalogar nada. Eu não vejo uma árvore. Árvore é uma palavra. Eu vejo o movimento das folhas, vejo a relação de tamanho com uma pedra, a sombra. Procuro sempre deixar a relação com as palavras para entrar directamente em relação com as coisas. Não quero dar um nome a nada, enumerar nada. Só me interessam as relações, o peso entre as coisas…»
E mais adiante:«Eu vejo na natureza um imenso campo de possibilidades de me pôr em causa, de me construir de novo e, a partir daí, viver de novo o outro como outro e reconstruir a minha relação com os meus semelhantes…»
Tais palavras trazem-me à memória uma declaração de David Hockney, que li no último número da Art Press: «Penso que a única maneira de renovar a arte é voltar à natureza. A natureza é ilimitada, é um disparate afirmar que já a esgotámos».
Silvæ, a retrospectiva de Queiroz percorre-se como uma paisagem. É como um passeio no campo, portanto, mas um passeio mental. Como no campo, vemos sobretudo detalhes. Arbustos, uma árvore pendurada numa rocha, um pedaço de céu, tudo no limte da abstracção. Como na vida real, são os pormenores que tornam uma paisagem inesquecível, pois só os fragmentos «falam» verdadeiramente. E se tudo o que vemos aqui nos toca é porque, na verdade, só vemos o que nos toca. Por isso, digo: inspirada na natureza, esta obra interroga-nos. É uma obra exigente, que nos força a pensar, se é que queremos ver alguma coisa
É verdade que podemos passar por estes desenhos e estas pinturas e limitarmo-nos a imaginar os matagais que as inspiraram, mas seria não ver o principal: o que temos dentro de nós. Toda a arte digna desse nome nos põe a nu. Não perante o mundo mas perante nós próprios.
Uma última questão: a Culturgest proíbe que se fotografe a exposição. Como é que uma instituição que promove exposições de fotografia proíbe que se fotografe? É uma atitude fascista e estúpida. De resto, no edifício sede da Culturgest, a sensação geral é a de estarmos dentro de um cofre gigante. Ou de uma prisão. Para aceder a qualquer lado, até à casa de banho, temos que empurrar portas de metal, pesadas e frias. A arquitectura, os materiais, têm algo de opressivo e a presença de seguranças pouco discretos reforça este sentimento de ameaça. Para a Culturgest, a arte e a cultura são um património material, pouco mais.
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João Queiroz
sábado, 20 de novembro de 2010
Da fotografia
O fotógrafo, tal como eu o entendo, não procura. Apenas encontra.
*
Recoheço o verdadeiro fotógrafo na atenção que presta aos mínimos pormenores. Para ele, nada é menor ou desinteressante.
*
Segundo Bashô, o poeta japonês, um hai-ku deve revelar, ao mesmo tempo, o imutável (a eternidade que nos transcende) e o fugitivo (o efémero que nos atravessa). O mesmo diria de uma fotografia conseguida.
*
O objectivo é fotografar com o olho interior. A máquina como prótese da alma.
*
Programa de fotógrafo: escrever com a luz. Como Deus ensinou.
*
Recoheço o verdadeiro fotógrafo na atenção que presta aos mínimos pormenores. Para ele, nada é menor ou desinteressante.
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Segundo Bashô, o poeta japonês, um hai-ku deve revelar, ao mesmo tempo, o imutável (a eternidade que nos transcende) e o fugitivo (o efémero que nos atravessa). O mesmo diria de uma fotografia conseguida.
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O objectivo é fotografar com o olho interior. A máquina como prótese da alma.
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Programa de fotógrafo: escrever com a luz. Como Deus ensinou.
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Da fotografia
Deerhunter
A minha lista dos melhores discos publicados em 2010 está quase pronta. Veremos o que nos vai trazer Novembro e Dezembro, mas Halcyon Digest, quarto disco dos Deerhunter, figurará quase de certeza no pódio. Indie rock quase perfeito, canções de sonho, assentes em guitarras e vozes que se desenrolam, como alguém já escreveu, «num delicioso torpor, entra a escuridão e a alegria». Estou fã.
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Halcyon Digest
Derrida
«Não fiz as pazes com a inevitabilidade da minha morte e duvido que alguma vez venha a fazer. Nenhum dos meus pensamentos consegue libertar-se da consciência de que o meu fim se aproxima. É verdade que os acontecimentos terríveis que agitam o mundo ocupam um lugar no meu espírito, mas sempre ao lado deste medo da minha própria morte». Assim falava Jacques Derrida, em 2002, numa entrevista ao Los Angeles Weekly. Na mesma altura, ele afirmava que apenas meia dúzia de pessoas no mundo podiam entender a sua obra. Meia dúzia de pessoas já é muito bom, digo eu. Que uma só pessoa no mundo nos compreendesse verdadeiramente já seria genial.
Marilyn Monroe
Acaba de sair em França um livro reunindo os escritos íntimos de Marilyn Monroe. Numa recensão ao livro, li esta frase magnífica da actriz: «Hollywood é um local onde te dão cinco mil dólares por um beijo e cinquenta cêntimos pela tua alma».
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Marilyn Monroe
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Mimi Perrin
Jeannine Perrin, mais conhecida como Mimi, faleceu ontem em Paris aos 84 anos. Era uma das fundadoras do grupo vocal Double Six (ver vídeo), que todos os fãs do jazz veneram. Também pianista, ela foi responsável (entre 1959 e 1965), por alguns arranjos inovadores que adaptavam para voz famosos instrumentais da época. Se não conhecem, procurem, se faz favor.
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Mimi Perrin
Grande Houellebecq
«Je ne suis pas un citoyen et je ne veux pas le devenir. Le devoir par rapport à son pays ça n’existe pas, il faut le dire aux gens, aucun. On est des individus. Je ne me sens aucun devoir à l'égard de la France. Pour moi, elle est un hôtel, rien de plus.» Estas declarações de Michel Houellebecq, proferidas depois de receber o conceituado Prémio Goncourt, estão a chocar a França, e alguns reclamam mesmo que lhe seja retirada a nacionalidade francesa. Como ele, não devo nada ao meu país, um país onde praticamente não tenho direitos, mas apenas deveres, que me encara como um simples pagador de impostos e um consumidor mais. Infelizmente, Portugal não chega sequer a ser um hotel, uma pensão rasca quanto muito. É triste, mas é a mais absoluta das verdades.
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Michel Houellebecq
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Mistérios de Lisboa
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Raúl Ruiz
The Drums
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
domingo, 14 de novembro de 2010
Careful
Maurice Merleau-Ponty: «Ce n'est pas l'oeil qui voit. Ce n'est pas l'âme. C'est le corps comme totalité ouverte.»
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Filipa
A Filipa, filha da minha sobrinha Sara, nasceu no dia de S. Martinho. Fica aqui a primeira foto que lhe tirei.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Manuel Cintra Ferreira
Ontem morreu, aos 68 anos, vítima de um tumor cerebral, o Manuel Cintra Ferreira. Quando li a notícia, numa nota de rodapé durante o telejornal, fiquei em estado de choque. Sabia que estava doente, mas a última vez que o vi parecia estar a recuperar bem. Durante 20 anos fui seu colega no Expresso e deixem-me que vos diga que foi das pessoas mais decentes que conheci naquele jornal. Nunca o ouvi dizer mal de ninguém e, na verdade, também nunca ouvi ninguém dizer mal dele, o que no meio dos jornais é absolutamente extraordinário.
Para além de crítico de cinema do Expresso e colaborador da SIC, o Manuel era o mais antigo programador da Cinemateca Portuguesa. A sua memória cinéfila era prodigiosa e proverbial. Toda a gente no Expresso o considerava era uma autêntica enciclopédia da história do cinema. Sabia tudo, tinha visto tudo, era um apaixonado que gastava todo o dinheiro que ganhava em livros, revistas e DVD. Vivia do e para o cinema.
Nas suas frequentes idas a Paris, nunca se esquecia de me trazer uma revista de música sem distribuição em Portugal. Recentemente, o Manuel doou à Cinemateca duas cópias, novinhas em folha, de dois inesquecíveis clássicos de que ele gostava particularmente: O Ladrão de Bagdade (1940), de Michael Powell, Ludwig Berger e Tim Whelan e A Desaparecida (1956), de John Ford. Pagou-as do seu bolso, num último gesto que diz bem o homem generoso que era.
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Manuel Cintra Ferreira
sábado, 6 de novembro de 2010
Lou Reed
Lou Reed, que está em Portugal para apresentar uma exposição de fotogrias intitulada Romanticism, declarou a quem o quis ouvir: «fotografar é exactamente o mesmo que fazer música». Concordo absolutamente. Já o tinha escrito. Aliás, Patti Smith pensa o mesmo. Ainda ontem ouvi na TV5 uma entrevista com ela durante a qual declarou: «Não posso passar nem um dia sem escrever um texto, fazer um desenho ou tirar uma fotografia».
Segundo os jornais, a mostra de Lou Reed (que ainda não vi) reúne 23 fotografias, a maioria paisagens, nas quais surge apenas uma figura humana, a sua mulher Laurie Anderson.
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sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Confissão
É forçoso que o reconheça: sou ateu e crente ao mesmo tempo. Com mesma convicção. Não acredito que a minha alma resista à morte, mas sei que Deus existe porque vejo a sua mão em todo o lado. Através de toda a beleza que existe no mundo, Ele lembra-me quem a criou. Quanto à fealdade e à maldade, sem dúvida, fazem parte do preço que temos que pagar por não sabermos ver para lá das aparências.
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Confissão
Dos sonhos
Acabo de ler no jornal as declarações de um cientista convencido de que, no futuro, se conseguirá gravar os sonhos. Por mim, o cinema acabava nesse dia. O meu inconsciente é o mais criativo, profundo e inesgotável cineasta que conheço.
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Dos sonhos
Pura realidade
Quando, ontem, alguém me perguntou o que pensava da situação política, lembrei-me da resposta que Jean Genet deu um dia a André Malraux: «Não gosto suficientemente de si para lho dizer.»
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Pura realidade
Afrocubismo
Juntando cantores já desaparecidos como Ibrahim Ferrer e Compay Segundo, o Buena Vista Social Club foi na altura o mais bem sucedido disco world de sempre. No entanto, como se sabe, acabou por não ser o disco planeado pela editora World Circuit. A ideia incial era juntar músicos africanos com cubanos e ver o que dava. Na altura, houve um problema com os vistos dos músicos africanos e o disco acabou por fazer-se, em Havana, com o ouro da casa. Nick Gold, o produtor, não esqueceu, no entanto, o projecto e agora, muitos anos depois, realizou-o, juntando num mesmo estúdio alguns dos melhores músicos do Mali (como Toumani Diabaté ou Bassekou Koyaté, para apenas citar dois instrumentistas que adoro) com a banda do guitarrista Eliades Ochoa. O resultado está aí, chama-se AfroCubism e é, de longe o melhor disco do ano em matéria de músicas do mundo. Simplesmente obrigatório!
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Buena Vista Social Club
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
O peixinho vermelho
Um dia decidi comprar um peixinho vermelho para oferecer à minha filha. Evidentemente, tive que comprar também um aquário e optei por um globo de vidro. Para casa, levei ainda umas pedrinhas, para pôr no fundo do aquário, e uma pequena planta para o decorar, para já não falar da latinha com comida.
O aquário, com o seu respectivo ocupante, ficavam muito bem na estante que lhe destinei e, como previsto, a minha filhota divertiu-se bastante a ver o peixinho vermelho às voltas no seu confinadíssimo espaço. Naturalmente, quis ser ela a dar-lhe a primeira refeição, tendo despejado quase metade da latinha para dentro de água. Na manhã seguinte, o peixinho boiava inerte, de barriga para cima, e tive que o tirar antes que alguém o visse.
O senhor da loja onde fui comprar um novo peixe explicou-me que a morte se devera ao excesso de comida. «Os peixes», explicou ele, «não conseguem parar de comer. Comem até rebentar».
A minha filha nem deu pela troca. O novo peixe era idêntico ao anterior, provavelmente até eram irmãos.
Infelizmente, apesar de lhe dar apenas a quantidade aconselhada pelo vendedor, o segundo peixe também apareceu morto, uns dias mais tarde.
Quando lá fui reclamar, o senhor da loja explicou-me que «os peixinhos vermelhos são muito delicados e morrem com muita facilidade, sabe-se lá porquê». E rematou: «É por isso que são baratos».
Não me lembro de quanto tempo durou o terceiro peixinho, nem o seu sucessor, mas lembro-me que um belo dia, ou melhor, uma noite de má memória, me vi em sonhos na pele (é uma maneira de falar) do peixinho, flutuando no tempo, imerso num cenário de terror onde tudo parecia desmesurado e deformado. Sim, sonhei que era um peixe encerrado numa esfera de vidro e, de repente, percebi porque morriam tão facilmente os peixinhos vermelhos, pelo que nunca mais quis ter um em casa. À minha filha disse que, na minmha opinião, o peixinho desaparecido devia ter ido para o céu. Ao que ela retorquiu, naquele tom que têm as crianças quando nos querem dizer que não são tão ingénuas como julgamos: «Não sabia que os peixes também podiam voar».
Resumindo, desde essa altura abateu-se sobre mim uma maldição: sempre que tenho uma insónia sinto-me um peixinho encerrado dentro de um aquário minúsculo. Não imaginam como é exasperante; a única coisa a fazer é levantar-me e escrever até voltar a sentir-me humano.
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quarta-feira, 3 de novembro de 2010
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