sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Caravaggio


Claro, já tinha visto reproduções. Possuo até em casa um livro que reúne a totalidade das obras de Caravaggio. Mas nunca tinha estado em presença dos seus quadros. Por isso, quando uma bela tarde deste mês de Fevereiro, deparei com o seu «David e Golias» na Villa Borghese, fiquei absolutamente siderado. Ao vivo, o quadro tem a força de um murro no estômago.

David segura pelos cabelos a cabeça degolada de Golias, que tem os olhos e a boca horrivelmente abertos. O jovem adulto olha para o homem que acabou de matar quase com pena. Apesar de segurar uma espada na mão direita, o seu olhar é doce.

Não sei se sabem, mas este Golias é o próprio artista. O quadro foi pintado propositadamente para oferecer ao Papa, pois com ele o pintor queria fazer-se perdoar um crime hediondo (matou um homem numa rixa absurda). O facto de se ter colocado no lugar do degolado é visto como um sinal do seu arrependimento. E o Papa assim o entendeu, porque perdoou. Infelizmente, o pintor já não pôde regressar a Roma, tendo falecido entretanto (a 18 de Julho de 1610, aos 37 anos).

Se adorei este «David e Golias», gostei ainda mais do outro quadro de Caravaggio presente na Villa Borghese: «A Madona com a Serpente».

Nesta obra vemos a Virgem segurar no menino (já quase adolescente) sob o olhar atento de santa Ana. Jesus está nu e pisa o pé da mãe que por sua vez pisa uma cobra que se contorce sob a pressão. O simbolismo é evidente (conhecemos o significado da cobra na Bíblia e no imaginário da época), mas a mistura de ingenuidade angelical (divina?) que se desprende das duas figuras principais contrasta com a forte carga erótica representada pelo contacto dos pés nus, o pronunciado decote da virgem e a pilinha bem em evidência do seu filho.

Aos olhos de Caravaggio, Maria representava «a» mulher, todas as mulheres. Para a representar , o irreverente pintor escolhia geralmente meretrizes, como no quadro que acabo de descrever.

Caravaggio era de resto um «rufia», conhecido por procurar brigas, frequentar o submundo e andar com armas proibidas por lei. Esteve preso por diversas vezes e, como já disse, viria a assassinar um homem (no dia 29 de Maio de 1606), pelo que teve de fugir de Itália e viver exilado até ao fim dos seus dias.

Dois dias depois de ter estado na Villa Borghese (sem dúvida um dos museus mais bonitos do mundo), encontrei no Palácio dos Conservadores mais dois belíssimos quadros de Caravaggio: um representando uma «vidente» que lê a palma da mão a um jovem fidalgo, sendo o outro um retrato de São João Baptista (Caravaggio pintou pelo menos três retratos do santo).

O primeiro destes dois quadros é um tratado de malícia. Fingindo ler a sina do jovem fidalgo (persumo que seja fidalgo por causa das roupas que enverga), a sorridente e sedutora rapariga está na realidade a roubar-lhe um anel.
Também o São João Baptista à guarda dos Museus Capitolinos é um adolescente, ou um muito jovem adulto, se preferirem. Este quase nu, numa pose que sem ser lasciva pode ser considerada provocadora. Por causa deste tipo de retratos, muitos comentadores asseguram que Caravaggio era homossexual ou, no mínimo, bissexual.

Uma coisa é certa: durante a minha estadia em Roma, fiquei tão obcecado pelo Caravaggio que fui à procura de todos os seus quadros espalhados pela cidade.

Na galeria Doria Pamphilj, encontrei mais duas obras admiráveis: «Descanso na fuga para o Egipto» e «Madalena penitente». As obras estão lado a lado e salta à vista que, em ambas, a mulher é a mesma. Até a posição do rosto e expressão são idênticas. Também neste caso se diz que o modelo terá sido uma prostituta.
O «Descanso na fuga para o Egipto» é uma obra de juventude. É mais luminoso e alegre que as obras posteriores, mas já tem pormenores geniais. O modo como José descansa os pés, um em cima do outro, por exemplo, e a nudez do anjo que está de costas para nós, tocando violino de olhos fechados inflamam a nossa imaginação. Também Maria e o menino têm os olhos fechados, sem dúvida para apreciar melhor a música, como eu costumo fazer.
Para além de José que segura a pauta pela qual o anjo lê, só o burro tem os olhos abertos. Está lá atrás, meio escondido atrás de um arbustro, como um mirone, talvez perguntando a si próprio porque será que a sua voz nunca chegará ao céu.

Na Igreja S. Luís dos Franceses, a dois passos do Panteão, estão três pinturas do mestre do «claro-escuro» (como alguns lhe chamam), que evocam três fases da vida de São Mateus. Ornam as paredes de uma capela e só se podem ver ao longe, em más condições.
Gostei especialmente do quadro intitulado «A Vocação de S. Mateus», onde Jesus Cristo irrompe na sala onde se encontra o cobrador de impostos. A luz que ilumina os diversos rostos, e muito em particular a um jovem que tem um chapéu com uma pluma na cabeça, empresta à cena um encanto indescritível. Neste, como noutros quadros, Caravaggio usa a luz como um fotógrafo. Faz sempre com que ela incida sobre o que, na sua opinião, importa registar. O que não interessa fica na sombra ou na escuridão.

No Palácio Barberini, está o quadro que mais queria ver: «Judite e Holofernes» (na foto).

Talvez se recordem que a bela Judite seduziu um general inimigo, cujas tropas cercavam a cidade onde vivia, organizando um banquete em sua honra. Quando ele adormeceu, já bêbado, ela degolou-o com a ajuda de uma criada e expôs a sua cabeça nas muralhas da cidade, conseguindo assim que o exército inimigo debandasse.

Este episódio sangrento inspirou muitos artistas, e dado o gosto de Caravaggio pela violência, o tema só podia inspirá-lo. A obra tem uma força estonteante. Dificilmente esquecerei a espada atravessada no pescoço daquele homem barbudo, cujo grito mudo quase consegui ouvir dentro de mim. Qualquer dos três rostos em cena é brutal: o da vítima, entre o espanto e a agonia, o da criada carregado de ódio e, sobretudo, o de Judite com um olhar onde se mesclam a determinação e o nojo, mas também (será impressão minha?) um quase imperceptível prazer sádico. Direi mesmo que, pelo menos aos meus olhos, este é de todos as obras de Caravaggio que conheço, a mais poderosamente «erotizada».

A seu lado, um belíssimo «Narciso» (outra das suas obras emblemáticas), quase passa despercebida.

P.S. - Este fim-de-semana inaugura em Roma uma exposição que reúne 24 obras-primas de Michelangelo Merisi (Caravaggio era o nome da sua aldeia natal, que ele adoptou como nome artístico). A mostra celebra o quarto centenário da sua morte e estará no Palácio de Quirinal até dia 13 de Junho. Atenção: o Museu já fez saber que mesmo antes de abrir a exposição já 50 mil pessoas tinham reservado uma entrada. Telefone: 0039 06 39967500. Site: www.scuderiequirinale.it.

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