quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Ficção rápida

Era uma celebridade, mas à medida que a sua fama ia crescendo, o senhor Tavares sentia-se cada vez mais infeliz. Porque a vida é assim feita que a cada momento nos aproximamos da morte e, portanto, do esquecimento.

O senhor Tavares achava que o seu sucesso era um imenso mal-entendido, pois cada vez que lhe falavam dos seus livros, mostravam não os entender em absoluto. O senhor Tavares começava a duvidar que um dia leria uma crítica que tivesse a ver com o que efectivamente escrevia, mas também não se importava muito com isso.

O senhor Tavares nunca dava entrevistas. A única frase que um repórter conseguiu arrancar-lhe foi: «Todo o leitor é um traidor; todo o escritor, um falhado».

Ocasionalmente, o senhor Tavares escrevia um poema, mas como achava que os poemas eram tanto melhores quanto mais curtos fossem, frequentemente resumiam-se a meia dúzia de palavras. Como este, por exemplo: «De mãos vazias o digo: não era aqui que eu queria chegar».

O senhor Tavares sabia que, por mais livros que escrevesse, jamais se sentiria satisfeito, já que o seu sonho era outro. O que ele mais desejava era ser o senhor Kafka, mas aqui e agora, com o Hospital da Luz ali à mão.

Todos os dias, o senhor Tavares saía de casa para regressar a uma casa diferente. Incapaz de encontrar o seu verdadeiro lar, ele contentava-se com as casas cuja fechadura a sua chave conseguia abrir.

Foi assim que um dia veio ter a minha casa. Entrou sem pedir licença, sentou-se no sofá, quase em cima de mim, e adormeceu imediatamente, talvez para me roubar os sonhos e transforma-los em novos contos.

Quando acordou, viu que eu estava a fazer chá e afirmou, como se falasse para si próprio: “O que o mundo mais preza, cada vez o desprezo mais. Mas quanto mais estreito é o caminho, mais livre é o meu pensamento”.

Depois de me ter roubado o pequeno-almoço, e antes de ir à sua vida, o senhor Tavares ainda teve a lata de me dizer: «Como dizia Borges, a infelicidade sabe encontrar-nos; não é preciso procurá-la.»

1 comentário:

joana lee disse...

a infelicidade sabe encontrar-nos mas só nós podemos encontrar a felicidade. eu diria ficção zen. Love. J

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