quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A arte de dar peidos


Acaba de sair a minha tradução de A Arte de Dar Peidos, de Pierre-Thomas-Nicholas Hurtaut. Para vos abrir o apetite, fica aqui a introdução que escrevi para a edição portuguesa:
Incrédulo, o leitor interrogar-se-á: mas então, dar peidos também é uma arte? Se a curiosidade o levou a pegar neste pequeno livro, a resposta está nas suas mãos. E garanto-lhe: a incursão por estas páginas revelar-se-á tão divertida como instrutiva. Fica, porém, o aviso: talvez o opúsculo lhe dê mais para pensar do que está à espera, pois o que se passa no nosso corpo diz mais sobre nós do que estamos preparados para admitir.
Publicado pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, A Arte de Dar Peidos teve tanto sucesso que o autor a reeditou várias vezes até à sua morte (que ocorreu em 1791). Com o tempo, a dissertação tornou-se num clássico da literatura cómica, escatológica e pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis as edições e traduções da obra no mundo inteiro. Já veremos porquê.
Filho de um comerciante (negociava cavalos), Pierre-Thomas-Nicolas preferiu dedicar-se ao ensino (professor de latim na Escola Militar) e, mais tarde, à literatura, em vez de seguir as pisadas do pai, como este desejava. A sátira não era o seu único domínio. Latinista e gramático encartado, assinou obras de literatura Le Voyage d’Aniers, 1748), de história (Dictionnaire historique de la ville de Paris, escrito em colaboração com o seu amigo Magby, em 1779), de filologia (Dictionnaire des mots homonymes de la langue française, 1775), e até de «medicina» (Essais de médecine sur le flux menstruel, 1754).
Foi, contudo, graças ao texto que o leitor tem entre mãos que Hurtaut se tornou imortal, inspirando mesmo um escritor como Frank Érvart a escrever: «nesta obra mundana e libertina, sopra o vento do espírito das Luzes».
Este falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às suas últimas consequências pois, no fundo, quer lembrar-nos que por baixo das rendas e dos perfumes, temos vísceras como qualquer outro animal e que não devemos envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como afirma, o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que pode e deve ser assumido como uma fonte de prazer. E até de arte, pois dar peidos não custa, custa é saber dá-los.
Erudito, Hurtaut cita abundantemente os autores clássicos (Aristófanes, Cícero e Horácio, entre outros), mas também pensadores mais contemporâneos, para nos lembrar que um bom peido, ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de brincadeira e de prazer, mas igualmente uma arma de guerra ou uma declaração de independência. Além de que um peido dado na boa altura é capaz de virar uma situação a nosso favor, como se verá na histórias do «pobre» Diabo e do Príncipe Peido-Airoso
A arte de dar peidos é, pois, uma ocasião rara para aprofundar um assunto sobre o qual poucos se debruçam em boa verdade. Hurtaut procura dar a volta à questão, esgotá-la sob todos os aspectos. E se é verdade que, tal como lembra o seu subtítulo, o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituados e os hipócritas (para não falar dos que têm prisão de ventre, ou diarreia, mental), a sua utilidade é inquestionável.
O que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que o peido tem de dramático (ou trágico-cómico, se preferirem) é vir lembrar-nos que somos imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo ainda antes de morrermos. E contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
A Arte de Dar Peidos não se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das razões porque o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável do peido permanecer hoje uma manifestação tão desconhecida da generalidade das pessoas como o era no século XVIII.
Por isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto. Deixem-me recordar que este hino aos gases internos vem lembrar-nos que o peido pode ter uma força expressiva extraordinária. Ele está para o corpo como o vento está para o mundo. É um sopro e, logo, divino. Se Deus o criou, ele lá sabe. A Natureza não se engana e os homens mais felizes são os que se soltam sem vergonha. Reter um peido não é bom para a saúde. Todos são bons, defende Hurtaut, porque todos têm a sua razão de ser.
Para além do mais, a escrita de Hurtaut é uma preciosidade, a obra de um virtuoso da escrita satírica, que sabe variar de estilo para criar um verdadeiro mosaico de citações e anedotas inesquecíveis. Ele maneja a língua francesa com uma musicalidade admirável e com a elegância dos escritores da época.
Roland Barthes escreveu um dia: «Por escrito, a merda não cheira mal». Não sei se concordo, há textos que fedem, e ao dizer isto estou-me a lembrar essencialmente de discursos políticos. A Arte de Dar Peidos, pelo contrário, não ofende nem o olfacto nem a inteligência. Ao transformar o ruído e o mau cheiro numa manifestação de bom gosto e erudição, Hurtaut fez obra de alquimista, defendendo, por exemplo, que não há no mundo som mais mavioso do que o peido de uma virgem. Não admira que a sua obra continue a suscitar a nossa curiosidade e aplauso.
De resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de peidos, concebido por um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma, decerto já o perceberam: a matéria do livro é, nem mais nem menos, do que um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.

1 comentário:

Denise disse...

Estive hoje com ele nas mãos e gostei do que li.
Não tive a oportunidade de ler o original, em francês, mas o texto em português flui muito bem. Parabéns pela tradução e pela excelente introdução.

Arquivo do blogue