segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Silvæ


No texto oficial da exposição pode ler-se que foi por volta de 1998 que «João Queiroz (Lisboa, 1957) passou a tomar o género da paisagem como quadro de referência do seu trabalho, radicalizando uma investigação sobre a pintura e o desenho como campos de construção de novos modos de percepção e de conhecimento». E também: «Esta exposição, a primeira antológica do trabalho de João Queiroz, ocupa as duas galerias da Culturgest, reunindo um conjunto muito vasto de pinturas e de desenhos realizados ao longo dos últimos vinte anos. Um convite a descobrir ou redescobrir uma obra de extraordinária singularidade, de enorme rigor e vitalidade, que se reinventa permanentemente na sua incessante averiguação das possibilidades da pintura e do desenho como construção de novos modos de ver.»
Na mesma publicação (distribuída gratuitamente aos visitantes da exposição), vem uma entrevista com o pintor onde ele afirma: «Com o meu olhar não quero compreender nada, organizar nada, dispor de nada, catalogar nada. Eu não vejo uma árvore. Árvore é uma palavra. Eu vejo o movimento das folhas, vejo a relação de tamanho com uma pedra, a sombra. Procuro sempre deixar a relação com as palavras para entrar directamente em relação com as coisas. Não quero dar um nome a nada, enumerar nada. Só me interessam as relações, o peso entre as coisas…»
E mais adiante:«Eu vejo na natureza um imenso campo de possibilidades de me pôr em causa, de me construir de novo e, a partir daí, viver de novo o outro como outro e reconstruir a minha relação com os meus semelhantes…»
Tais palavras trazem-me à memória uma declaração de David Hockney, que li no último número da Art Press: «Penso que a única maneira de renovar a arte é voltar à natureza. A natureza é ilimitada, é um disparate afirmar que já a esgotámos».
Silvæ, a retrospectiva de Queiroz percorre-se como uma paisagem. É como um passeio no campo, portanto, mas um passeio mental. Como no campo, vemos sobretudo detalhes. Arbustos, uma árvore pendurada numa rocha, um pedaço de céu, tudo no limte da abstracção. Como na vida real, são os pormenores que tornam uma paisagem inesquecível, pois só os fragmentos «falam» verdadeiramente. E se tudo o que vemos aqui nos toca é porque, na verdade, só vemos o que nos toca. Por isso, digo: inspirada na natureza, esta obra interroga-nos. É uma obra exigente, que nos força a pensar, se é que queremos ver alguma coisa
É verdade que podemos passar por estes desenhos e estas pinturas e limitarmo-nos a imaginar os matagais que as inspiraram, mas seria não ver o principal: o que temos dentro de nós. Toda a arte digna desse nome nos põe a nu. Não perante o mundo mas perante nós próprios.
Uma última questão: a Culturgest proíbe que se fotografe a exposição. Como é que uma instituição que promove exposições de fotografia proíbe que se fotografe? É uma atitude fascista e estúpida. De resto, no edifício sede da Culturgest, a sensação geral é a de estarmos dentro de um cofre gigante. Ou de uma prisão. Para aceder a qualquer lado, até à casa de banho, temos que empurrar portas de metal, pesadas e frias. A arquitectura, os materiais, têm algo de opressivo e a presença de seguranças pouco discretos reforça este sentimento de ameaça. Para a Culturgest, a arte e a cultura são um património material, pouco mais.

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