– Por onde queres que comece?
– Começa por onde quiseres, tanto faz.
– O difícil é começar...
– Tabucchi aconselha a começar por um facto.
– Quem é esse?
– É um escritor italiano. Viveu em Portugal, até escreveu um livro em português.
– Então está bem, comecemos por um facto. A morte do meu pai, por exemplo. Não só é um facto, como ainda por cima é um facto consumado.
– Isso não, bolas. Não quero que isto degenere numa sessão de psicanálise. Não era o que eu tinha em mente.
– Se é assim, calo-me já.
– Não sejas chata Sílvia. Faz uma nova tentativa, vá lá. Procura pensar em coisas engraçadas. De certeza que te já te aconteceram histórias giras.
– Histórias giras? Estás a gozar comigo? Foi para isto que vieste cá a casa? Se é assim, se é isso que tu queres, o melhor é ires já embora. Não penses que vou em todas as tuas conversas, não estou assim tão desesperada.
– Que se passa contigo? Não me ajudas em nada, não dizes nada de jeito...
– Já te disse Mário que não gosto desta sensação de te estares a aproveitar de mim para as tuas historietas. Sinto-me como se tivesse embarcado numa aventura que não me diz respeito.
– Tem calma e ouve o que te digo. Temos umas horas pela frente, não vais querer estragá-las, pois não? Lá fora está um calor horrível, aposto que te ias sentir mal sabendo-me por aí a caminhar aí pelas ruas, zangado contigo.
– Que propões então?
– Vamos esquecer que o tempo existe. Vamos fazer como se estivéssemos a sonhar. Vamos dizer tudo o que nos passe pela cabeça.
– O que é que tu queres exactamente? Onde é que queres chegar?
– O que eu quero é perceber se podemos chegar a algum lado.
– Aqui sentados?
– Aqui sentados, sim.
– Dispara.
– A vida somos nós que a fazemos. A responsabilidade é nossa. A história é nossa. Tudo o que dissermos pode virar-se contra nós.
– Que queres dizer com isso?
– Não é caso para teres medo.
– Eu não tenho medo.
– Ai isso é que tens. Basta olhar para os teus olhos.
– Detesto esta sensação de saber menos do que tu.
– A ignorância tem um lado bom. Aliás, tem vários lados bons.
– Sim? Quais?
– Se não percebes isto, tenho pena de ti.
– Eu, pelo contrário, vejo a ignorância como uma ameaça muito grande. Faz-me medo saber que há tantas coisas que não sei.
– A isso não se chama ignorância, mas sim paranóia.
– Vivemos num mundo em que quanto mais informação possuímos, mais fortes somos.
– Ilusão. Pura ilusão.
– Então partilha comigo o que sabes.
– Mas eu não sei nada...
– Mesmo esse nada eu gostaria de saber. Tudo o que esqueci me angustia. Tudo se esvai e não está certo. Devíamos ser um repositório de tudo o que vivemos, aprendemos, ouvimos, dizemos...
– Nós somos isso tudo. Está tudo dentro de nós.
– Sim, mas oculto por coisas sem importância nenhuma. Escondido atrás de preocupações tão risíveis como saber o que vamos fazer para o jantar ou o que vestir amanhã. A minha imperfeição dá cabo de mim. Detesto-me, se queres saber.
– Não quero saber.
– Não percebes nada do que estou para aqui a dizer, pois não?
– Acho que apenas que te estás a fazer interessante. Que te queres sentir uma personagem de romance... ou a actriz de um filme que não existe.
– E tu?
– E eu o quê?
– Estás-te nas tintas para o que eu estou a sentir.
– Que estás a sentir?
– Queres histórias giras? Então vou-te contar uma que ainda não aconteceu.
– Uma que ainda não aconteceu? Óptimo. Sabia que acabarias por me surpreender.
– Vai ser assim tal e qual, quase que aposto. Um dia vais acordar e quando estiveres a fazer a barba na casa de banho, eu vou querer entrar porque estou aflita para fazer chichi. Nessa altura, vais olhar-me pelo canto do olho, ali sentada na sanita a teu lado e, de repente... vais perceber que já não me amas.
– Que estás para aí a querer dizer?...
– Deixa-me falar, não me interrompas. Querias que eu falasse, agora aguenta. Não era para dizer tudo o que nos passasse pela cabeça?... Vais olhar para mim, para o meu corpo nu... e vais pensar: «Que vi eu nesta gaja? Que estou eu a fazer aqui?» Assim, de um dia para o outro, vais perceber que já não gostas de mim, que se calhar nunca gostaste e vais querer partir para outra.
– ...
– Não dizes nada? Perdeste o pio?... Em que estás a pensar?
– Estou a pensar que estás a contar o filme todo ao contrário. É a ti que vai acontecer isso, não a mim, se é que não aconteceu já. Provavelmente até foi esta manhã, quando estavas a tomar duche e eu entrei na casa de banho para fazer a barba. Através das cortinas do chuveiro, viste-me urinar e pensaste: «Que está este gajo a fazer em minha casa? Porque se comporta ele deste modo? Fui eu que lhe dei autorização para isso? Onde tinha eu a cabeça? Como pude eu alguma vez pensar que gostava dele?»
– Querias uma história meu querido? Pois aí a tens... A menos que prefiras a da mulher que vai fazer um aborto amanhã de manhã?
quarta-feira, 13 de maio de 2009
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