terça-feira, 17 de março de 2009

Ume femme douce



Ontem fui, em boa hora e em boa companhia, à Cinemateca ver Une femme douce, o primeiro filme a cores de Robert Bresson, baseado num texto de Dostoievsky (que adapta muito livremente) e realizado em 1969. O meu filho Daniel confessou não ter percebido nada. Como poderia ele, que tem vinte anos, ter entendido um filme que não procura imitar a vida, mas apenas se inspira nela para se construir como um poema visual? Como objecto artístico (ou seja, como a expressão de uma sensibilidade única e uma profunda necessidade de entender a mente humana), o filme é, aos meus olhos, uma obra-prima. Talvez como nenhum outro, Une femme douce é a ilustração perfeita dos pensamentos que compõem Notes sur le cinématographe, o livrinho de Bresson que tanto me marcou e que ainda hoje influencia as minhas reflexões sobre a arte.
A começar pelas ideias que veicula e a acabar nas imagens e sons que o constituem, o cinema de Bresson é uma lição de simplicidade, onde cada plano é propriamente genial (não gosto de usar a palavra, mas por vezes, impõem-se). Em verdadeiro «joalheiro» do cinema, Bresson trabalha cada elemento dos seus filmes com um amor e um rigor que, como já disse Le Clézio, «nos mostram o simples e difícil caminho para a perfeição».
Quanto a Dominique Sanda, é demasiado bela para não «encher» o filme todo. A sua beleza ilumina todas as cenas em que surge. De resto, no filme, ela representa a claridade, enquanto o marido é a obscuridade. Ela é o movimento, ele a imobilidade. Não admira que a ternura esteja completamente ausente desta relação baseada no dinheiro e em vontades não apenas diferentes, mas opostas. Aquilo por que ela anseia (seja lá o que for, nunca o saberemos) e o que ele procura são duas vias incompatíveis e é a assumpção dessa certeza que a leva ao suicídio, logo no início do filme. Para mim, Une femme douce tem dois momentos essenciais: aquele em que ela aponta a pistola ao marido que finge dormir e a cena (não menos sublime) em que vemos cair da varanda o xaile branco. A cena em que ela perde as asas. A menos que seja o contrário: no momento de morrer, ela transforma-se no anjo que prometia ser.

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