sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Mulher Sem cabeça



Numa entrevista publicada pelo jornal «Público», a realizadora argentina Lucrecia Martel, diz a certa altura, falando de piscinas: «Gosto de nadar no rio, no mar. Mas a água parada faz-me impressão. Há outra coisa que me aterroriza: na cidade onde vivo, o acesso à água não é fácil. Uma piscina é um enorme privilégio. E parece-me que há um enorme egoísmo numa piscina. Elas devem existir quando são públicas, porque esse pequeno paraíso deve ser para todos, tal como a saúde, a educação. O que é revolucionário é que os lugares para os prazeres, a preguiça, sejam de todos. E há uma coisa concreta: enquanto as pessoas com poder de compra constroem o seu paraíso artificial, descuidam-se os rios, os mares, os lagos, o acesso público à água deixa de ser importante. Em volta de uma piscina há muitas coisas a dizer sobre o estado do mundo.»
Um pouco mais adiante refere: «Uma piscina é muito parecida com uma sala de cinema. O ar é um meio elástico, o som propaga-se nesse meio. Estar encerrado numa sala de cinema é como estar dentro de uma piscina. Estamos imersos. Não temos a consciência de que vivemos imersos no ar. Só o som é que nos pode dar essa consciência.»
São declarações fabulosas e fizeram-me ir a correr ao King ver o seu novo filme La Mujer Sin Cabeza. Porém, se adorei La Ciénaga (2001) e La Niña Santa (2004), os seus filmes anteriores, este desiludiu-me um pouco. Entendo o que a realizadora argentina quis fazer, e dizer; admiro a sua maneira de filmar, o modo como utiliza a banda sonora e a direcção de actores (que lição!), mas não consegui aderir completamente à história. Lucrecia Martel afirma que a sua ideia era meter o espectador na cabeça da personagem, num estado de choque pós-traumático. «O cinema para mim são duas horas em que, com sorte, consigo colocar o espectador no corpo de outra pessoa», diz ela. Pois bem, no meu caso, e nos das pessoas que me acompanhavam, ela não conseguiu isso de todo. Na minha opinião. muito por culpa de María Onetto, a actriz principal, cujo rosto propositadamente opaco e baço foi bulindo com os meus (nossos) nervos.
Para além desse erro de casting, o filme sofre da ausência de um «twist» dramático, que em vez de aclarar adensasse o mistério e a inquietação (é muito pobre o truque de lançar a dúvida sobre o possível adultério da protagonista) e do facto das personagens secundárias estarem praticamente reduzidas à condição de acessórios animados, sem o mínimo de espessura dramática. O filme teria a ganhar, creio eu, em manter até ao fim a dúvida sobre se a mulher matou um cão ou uma criança. Dito isto, o melhor do filme está no naturalismo, chamemos-lhe assim, com que aborda a realidade quotidiana de um punhado de pessoas que vive no Norte da Argentina, denunciando as diferenças sociais entre os descendentes dos colonos espanhóis e os indígenas, por exemplo. Mais do que um filme de terror, como o classificou um crítico português, La Mujer Sin Cabeza, é um filme angustiado e angustiante. O mesmo jornalista apontou dívidas de Lucrecia Martel para com o Antonioni de A Aventura (porque é uma narrativa sem enredo?) e o surrealismo. Não são só as mulheres que perdem a cabeça de vez em quando.

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