quarta-feira, 15 de abril de 2009

Vinho e literatura

«Quando o vinho é puro, permite ver Deus», dizia Léon Blum, o conhecido político francês falecido em 1950. O imortal Shakespeare, por seu turno, falava do «espírito invisível do vinho», enquanto Claudel, autor da peça «Le Soulier de Satin» (que Manoel de Oliveira levou ao grande ecrã), lembrava, muito justamente, que cada garrafa de vinho encerra milhares de anos de civilização. Este poeta francês achava, com toda a razão, que «o vinho liberta o espírito e ilumina a inteligência». E um outro poeta francês, o torrencial Victor Hugo, lembrou que «Deus criou a água, mas o homem fez o vinho». Mais prosaico e com o sentido da realidade que o caracterizava, Napoleão afirmou um dia aos seus generais: «Sem vinho, não há soldados».
Bebida tão espiritual como inspiradora, o vinho sempre esteve muito presente na literatura através dos séculos. A Bíblia, por exemplo, refere-se ao vinho por diversas vezes. A primeira menção é no «Genesis», onde se diz que «Noé começou Noé a cultivar a terra e plantou uma vinha. Bebeu do vinho, e embriagou-se; e achava-se nu dentro da sua tenda». Mais adiante, o mesmo texto sagrado volta a referir-se aos efeitos do vinho relatando: «Então a primogénita disse à menor: “Nosso pai é já velho, e não há varão na terra que entre a nós, segundo o costume de toda a terra; vem, demos a nosso pai vinho a beber, e deitemo-nos com ele, para que conservemos a descendência de nosso pai”. Deram, pois, a seu pai vinho a beber naquela noite; e, entrando a primogénita, deitou-se com seu pai; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou. No dia seguinte disse a primogénita à menor: “Eis que eu ontem à noite me deitei com meu pai; demos-lhe vinho a beber também esta noite; e então, entrando tu, deita-te com ele, para que conservemos a descendência de nosso pai”. Tornaram, pois, a dar a seu pai vinho a beber também naquela noite; e, levantando-se a menor, deitou-se com ele; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai».
O «Livro dos Provérbios» tem igualmente algo a dizer sobre o vinho, embora nem sempre em termos muito recomendáveis. Por outro lado, alguns Evangelhos, como o de S. João e o de S. Marcos, se bem me recordo, referem a ligação do vinho com Jesus, com muitas analogias vinícolas. E se há episódios da Bíblia que toda a gente conhece é o milagre em que o filho de Deus transforma água em vinho (e em «bom vinho» ainda por cima) e o da Última Ceia quando Cristo dá vinho a beber aos seus discípulos asseverando: «Tomai e bebei, isto é o meu sangue».
Já para os Egipcíos, os Sumérios ou os Gregos, o vinho era o néctar dos deuses e o simbolismo do vinho sempre teve um papel importante nas celebrações rituais, religiosas ou pagãs. Alguns vinhos de renome, na antiga Grécia, eram citados por Homero, que descreve as colheitas, no Outuno, com profundo lirismo. Também o poeta Hesídio (que nasceu, viveu e faleceu em Ascra, no fim do século VIII a.C) conta a história dos vinhedos e o «Código de Hamurabi», primeiro livro sobre leis de que há memória (data de 1700 antes de Cristo), já imputa castigos a certas condutas de «casas de vinho».
Nenhuma outra bebida no mundo suscitou tanta atenção ou respeito como o vinho. Nenhum outro líquido se prestou tanto a comparações e citações literárias. Personalidades lendárias como Virgílio, Safo e Salomão entoaram loas ao vinho, para já não falar de Omar Khayyam, poeta persa que morreu por volta de 1120, e que provavelmente é o autor do maior número de poemas relativos ao vinho feitos por um homem só. Leiam-se os seus magníficos «Rubaya», para o comprovar. Aqui ficam três exemplos, entre muitos outros possíveis:

«Não vamos falar agora, dá-me vinho. Nesta noite
a tua boca é a mais linda rosa, e me basta.
Dá-me vinho, e que seja vermelho como os teus lábios;
o meu remorso será leve como os teus cabelos».


«Alcorão, o livro supremo, pode ser lido às vezes,
mas ninguém se deleita sempre em suas páginas.
No copo de vinho está gravado um texto de adorável
sabedoria que a boca lê, a cada vez com mais delícia».


«Hoje os meus anos reflorescem.
Quero o vinho que me dá calor.
Dizes que é amargo? Vinho!
Que seja amargo, como a vida».


Referindo-se ao vinho, o poeta Dante Alighieri, o autor da «Divina Comédia», escreveu em plena Idade Média: «O doce beber que nunca me teria saciado». E já que estamos a falar de poetas, impossível não citar Baudelaire (1821-1867), um dos maiores poetas franceses de sempre, cujo poema «L’âme du Vin», não resistimos a transcrever, numa tradução de Guilherme de Almeida:

«A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
“Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custa, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retinir a domingueira toada
E esperanças ungir em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo que os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!”»


Em França, país do vinho por excelência, são inúmeros os escritores e poetas que escreveram sobre o precioso líquido, como Lamartine ou Balzac, mas já que estamos a falar de poetas, convém não esquecer o chileno Pablo Neruda, que também escreveu uma «ode ao vinho». Reza assim:

«Vino color de día,
vino color de noche,
vino con pies de púrpura
o sangre de topacio,
vino,
estrellado hijo
de la tierra,
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo,
vino encaracolado
y suspendido,
amoroso,
marino,
nunca has cabido en una copa,
en un canto, en un hombre,
coral, gregario eres,
y cuando menos, mutuo.
A veces
te nutres de recuerdos
mortales,
en tu ola
vamos de tumba en tumba,
picapedrero de sepulcro helado,
y lloramos
lágrimas transitorias,
pero
tu hermoso
traje de primavera
es diferente,
el corazón sube a las ramas,
el viento mueve el día,
nada queda
dentro de tu alma inmóvil.
El vino
mueve la primavera,
crece como una planta la alegría,
caen muros,
peñascos,
se cierran los abismos,
nace el canto.
Oh tú, jarra de vino, en el desierto
con la sabrosa que amo,
dijo el viejo poeta.
Que el cántaro de vino
al beso del amor sume su beso.
Amor mio, de pronto
tu cadera
es la curva colmada
de la copa,
tu pecho es el racimo,
la luz del alcohol tu cabellera,
las uvas tus pezones,
tu ombligo sello puro
estampado en tu vientre de vasija,
y tu amor la cascada
de vino inextinguible,
la claridad que cae en mis sentidos,
el esplendor terrestre de la vida.
Pero no sólo amor,
beso quemante
o corazón quemado
eres, vino de vida,
sino
amistad de los seres, transparencia,
coro de disciplina,
abundancia de flores.
Amo sobre una mesa,
cuando se habla,
la luz de una botella
de inteligente vino.
Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre oscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico del fruto».


Em Portugal, em matéria de vinho e poesia, o exemplo maior é, sem dúvida alguma, Fernando Pessoa que num poema de 1935, diz: «Dá-me vinho, porque a vida é nada». E noutra altura: «Boa é a vida, mas o vinho é melhor». E a sua fotografia mais conhecida, é como se sabe, tirada numa tasca a beber um copo de três, sob a qual em escreveu em dedicatória para a sua amada Ofélia: «Apanhado em flagrante delitro».



Também os romances estão, desde sempre, repletos de histórias de vinho. São inúmeras as personagens da literatura mundial que não escondem a sua paixão pelo «néctar dos deuses», desde Fiódor Pávlovitch, o pai dos «Irmãos Karamázov» (o genial romance de Dostoiévski) até Sancho Pança, o fiel escudeiro de D. Quixote. Recorde-se que enquanto o cavaleiro da triste figura investe contra os seus moinhos de vento, o seu anafado companheiro prefere deliciar-se com as suas garrafas de vinho. Numa das passagens do clássico de Miguel de Cervantes, Sancho Pança afirma mesmo com legítimo orgulho: «Só pelo odor reconheço logo a região de um vinho e a sua qualidade; é um dom de família que herdei».
Esta evocação traz-me à memória o brasileiro Esmeraldo Siqueira que, sendo ateu convicto, escreveu no seu seu poema «In Vino Veritas»: «Quando bebo uma garrafa de vinho bom,/Mergulho em pleno sonho místico./Tenho vontade de ir à igreja/Fazer às pazes com Jesus Cristo...». O mesmo autor, médico e poeta falecido em 1987, na obra «Sugestões da Vida e dos Livros», disse também: «Amar os velhos livros, como saborear os vinhos velhos, já é um sinal de maturidade.»
Mas não foram só os poetas, os escritores e os filósofos a fazer o elogio do vinho. Rezam as crónicas que Alexander Fleming, o célebre inventor da pelicilina, disse um dia: «A minha invenção cura os homens, mas é o vinho que os torna felizes». Outro cientista famoso, Louis Pasteur, assegurou com convicção, chocando talvez alguns espíritos bem pensantes: «Há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros».
Convém, no entanto, não esquecer que um bom livro também pode embriagar. Quem nunca sentiu a cabeça a andar à roda depois de ler um belo poema ou um romance especialmente absorvente? Como um bom vinho, também um estilo literário pode ser encorpado e aveludado, ter um bouquet mais ou menos acentuado, ser leve e até possuir paladar e aroma. Isso mesmo lembra Bernard Pivot, um escritor que durante anos animou um programa semanal sobre livros na televisão francesa, e que em 2006 publicou um «Dictionnaire amoureux du vin», onde ao longo de quase 500 páginas nos guia com humor e ecletismo através de um universo complexo mas acessível. O seu pai tinha vinhas e produzia vinho e o livro dele é o de um amador que procura partilhar o seu prazer da bebida e das palavras, lendo-se com grande proveito.
Um outro livro cuja leitura recomendo vivamente é «Dégustation du vin à travers la littérature française», do japonês Kazuo Ogoura, publicado em 2003, infelizmente não traduzido para português. Antigo embaixador em França, Ogoura apaixonou-se pelo vinho e a França. Através de obras romanescas do séculos XIX e XX, ele estuda o papel do vinho na nossa sociedade e as suas análises sociológicas têm uma dimensão poética assinalável. É um livro apaixonante que abre muitas pistas sobre alguns dos mais belos textos que jamais se escreveram sobre o vinho.

3 comentários:

Odracir disse...

muuuiiito completo! abraço

efyes! disse...

Grande artigo. Gostei. Bebi-o até à última gota. Diz-me o que bebeste para escrevê-lo.

Unknown disse...

Verdadeiramente magnífico...
Um passeio pelo mundo dos vinhos através da literatura...
Ou seria o contrário?
Compartilharei na minha página - https://www.facebook.com/groups/recomendoisso/?fref=ts

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